Diante de uma situação tão inusitada quanto esta de isolamento social, me perguntei quem teria vivência nessa modalidade pra trazer alguma luz aos enfurnados em casa. A resposta estava bem entre um dos maiores viajantes do planeta: os navegadores. Conversei com duas famílias que viveram anos – ou ainda vivem – com crianças em veleiros desbravando o mundo sobre suas viagem de veleiro em família.
Quem já realizou uma travessia marítima de semanas sem pisar terra firme, com certeza tem experiência no que estamos todos passando agora. Principalmente aqueles que moraram anos com os filhos nesses espaços beeem reduzidos, tendo que cuidar de tudo: limpeza, refeições, educação dos pequenos, manutenção do barco e da navegação em si – inclusive nas madrugadas.
Viagem de veleiro em família: Experiência das famílias
Lucas Tauil de Freitas e Sandra Chemin decidiram tirar um ano sabático a bordo do veleiro Santa Paz (http://santapaz.com/) depois de um diagnóstico de câncer terminal – que se mostrou equivocado. Embarcaram em 2003 com a filha Clara ainda com 1 ano de idade, e ficaram dois anos navegando. Mais tarde, zarparam de novo já com a segunda filha Júlia, e viajaram por mais cinco anos. Hoje a família mora perto da capital Oakland, na Nova Zelândia.
Fábio Gandelman e Cecilia Quaresma, por sua vez, se conheceram quando ele já vivia no veleiro Planckton (http://www.planckton.com.br). Ela se mudou pro barco em 2006 e no ano seguinte tiveram o Igor, que agora está com 12 anos. Tentaram por cerca de cinco anos se readaptar à vida em terra firme, mas sentiram falta do balanço do mar e voltaram ao Planckton, onde vivem até hoje. No momento estão em Antigua e Barbuda, ilhas do Caribe, ansiosos pra poderem sair da faixa de furacões que iniciam sua temporada em julho naquela região.
Assista aos vídeos com as dicas destas viagens de veleiro em família, conheça mais da história delas e passe a ver a quarentena com outros olhos!
Apesar de agora estarmos todos neste mesmo barco, essas famílias navegadoras sabem que o confinamento opcional dentro de um barco é diferente em muitos aspectos de um confinamento imposto. A começar pelo planejamento e preparo que envolve embarcar para uma viagem ou uma vida a bordo. No caso da quarentena, de um dia pro outro, tivemos que fazer o trabalho de casa, cuidar da casa, educar os filhos, administrar medos e ansiedades diante das drásticas incertezas financeiras e de saúde. Mas muitos aprendizados da vida no barco podem ser aproveitados nos nossos dias de confinamento.
Momento de maior conexão com as crianças
A vida no Santa Paz fez com que Lucas e Sandra se conectassem muito mais com a natureza, com as suas filhas, entre si e cada um consigo mesmo. Em meio à cidade talvez seja difícil ter mais compreensão dos ciclos naturais, mas é uma boa oportunidade de se observar e buscar aprender mais sobre quem vive ao seu lado.
Durante as três semanas confinados durante uma travessia, Sandra e o marido puderam observar melhor as necessidades de cada uma das suas pequenas. Júlia, que é mais agitada, ganhou um “brinquedo” pra poder gastar sua energia física: um lugar onde podia se segurar e saltar centenas de vezes até se sentir mais leve.
Cecília e Fábio lembram que na primeira travessia internacional, de 18 dias, Igor ainda era bebê e aproveitava pra brincar de escorregar quando o barco inclinava. “Ele estava na casa dele, a gente mantinha a rotininha dele, e foi quem menos sentiu”, comenta Cecília.
Ensino: em vez de conteúdo, os pais podem ensinar a paixão pelo conhecimento
A educação dos filhos é uma das principais tarefas que os pais precisam assumir quando decidem por uma vida nômade. As duas famílias com quem conversei adotam o método Waldorf de ensino. Cecília é professora formada no método e Lucas e Sandra fundaram uma escola na mesma linha nos anos que viveram em Paraty, entre as viagens que fizeram.
O caso deles está um tanto distante da grande maioria hoje que de repente se viu sem poder mandar os filhos pra escola enquanto se dedica ao trabalho. Mas é um desafio que merece ser enfrentado. Cecília acha fundamental diferenciar homeschooling de ensino a distância. “Homeschooling é mais livre, não recebe atividades enviadas por uma instituição, como é o caso da realidade dos pais em quarentena.”
O tempo dedicado pros estudos no Santa Paz e no Planckton fica entre 2 e 4 horas por dia. E Sandra enfatiza que naquele momento a entrega do adulto deve ser “por inteiro”. Estar ali presente de corpo, alma e mente pra aquelas atividades, e não dividir atenções. Ela sugere que se crie um ritual pra marcar que é hora do estudo, principalmente no barco, onde um mesmo espaço precisa ser tudo – escola, mesa de trabalho e de refeição, área de manutenção do barco… “Nós sempre começávamos com um verso, uma atividade em conjunto. Outros casais, colocavam uma camiseta específica.”
Lucas amarra lembrando uma das coisas mais importantes que aprendeu quando se preparavam para assumir o importante “posto” de professor: “A gente ensina as crianças a aprender, é quando elas nos observam aprendendo é que aprendem a aprender. O trabalho não é de passar conteúdo, é de mostrar a paixão pelo aprender, o maravilhamento com o conhecimento, com o novo.”
Rotina no veleiro em família
As famílias brasileiras de classe média e alta, em geral, mandam as crianças pra escola, os pais saem pra trabalhar e uma diarista ou empregada cozinha, limpa e organiza a casa. Agora que estão tendo que dar conta de tudo – já que as funcionárias do lar não podem sair de suas casas -, surge a oportunidade pra apresentar aos pequenos esse “mundo novo”.
As crianças têm muito a aprender com as tarefas domésticas
É interessante envolver as crianças nas atividades, independentemente da idade delas. Arrumar camas, lavar pratos, varrer o chão, lavar roupa… a lista é grande. Não costumam ser as coisas mais divertidas de se fazer, mas, pro peso não ficar com um só (geralmente a mãe), cada um pode assumir um pouco – de preferência, aquelas com a quais mais se identifica ou com as que menos se incomoda.
Fábio conta que Igor sempre se interessou muito pelas atividades da “casa” e pela manutenção do barco. “Ele sempre ajudou de alguma forma dentro da capacidade e da possibilidade dele. Quando era pequenininho podia ser até meio um atrapalhar, mas estava sempre conosco nas atividades. E hoje já tem suas responsabilidades no dia a dia do barco.”
“Ter vivido essa experiência desde pequenas foi muito importante pra vida delas [da Clara e da Júlia, do Santa Paz]. Hoje vemos quanta autonomia elas têm. Elas não esperam que os pais façam por elas o que elas podem fazer”, conclui Sandra.
Embarque nesta!
E quando tudo isso passar, a quarentena tiver terminado, as fronteiras dos países se reabrirem, e só ficar uma vontade louca de viajar e navegar, saiba que é possível velejar como visitante no Planckton. Ou ainda fazer um passeio independente, alugando um barco para passear em países como Holanda, Alemanha, França, Itália, Irlanda e Polônia. Leia o post sobre esta viagem de barco pela Holanda: https://viajocomfilhos.com.br/2017/05/como-e-viajar-de-barco-pelos-canais-da-holanda/
A Rê Mesquita é mãe do Noah, do Liam, e tem rodinhas nos pés. Ela já conhece mais de 15 países, e vem reaprendendo a viajar desde o começo de 2017, quando o Noah nasceu. No meio de 2019, o Liam chegou para reforçar esse aprendizado. O mais importante pra ela é descobrir novos caminhos com os pequenos e não parar nunca de viajar.